sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Juntos, de qualquer jeito, de qualquer forma (parte 2)

Senti que acordei, mas não conseguia enxergar nada. Estava deitada em uma cama que não era a minha, pude perceber. Não conseguia me lembrar do que estava acontecendo e aonde estava.
Ouvi uma pessoa se proximando. Estremeci assustada.
- Juliana? Minha filha querida! Como você está?
Ah, era minha mãe! Respirei com alívio.
- O que aconteceu?  Por que não estou enxergando?
- Você se esqueceu querida? - senti a voz dela se misturar com lágrimas. - Você fez uma cirugia ontem. Passou por um transplante de córnea. Mas está tudo bem. Estou aqui com você.
Coloquei as mãos perto de meus olhos e senti um curativo grande. Ah, era por isso que eu não estava enxergando. Mas que história era essa de transplante de córnea?
Adormeci novamente.
Desta vez, meus pensamentos foram tomados por um filme de minha vida. Sabe quando você fecha os olhos e tudo bem a sua cabeça, esclarecendo suas dúvidas? Foi exatamente assim que eu me senti. E, honestamente, não queria ter me lembrado do câncer, dos amigos que me abandonaram e da barra que teria que enfrentar dali em diante.
Acordei com o médico me chamando. A voz estava distante... ou será que era eu que ainda sonhava? Não sei. Apenas ouvi uma voz gentil, perguntando como eu estava.
Respondi falando que estava bem, mas sem verdade nenhuma na minha voz.
Senti o médico cortando as ataduras em volta de minha cabeça e me falando para abrir com cuidado os olhos. Fiz isso e o mundo revelou-se novamente. Vi o quarto de hospital, os balões que minha mãe colocara na tentativa de deixar o lugar mais animado e minha família apreensiva, observando.
- Quer ver seus novos olhos, querida? - disse meu pai sorrindo e me dando um espelho de bolso.
Olhei com medo. Mas lá estava meu rosto inchado, mais intacto. E meus olhos... ah, estes estavam verdes como nunca haviam sido.
Mais tarde desta vez sozinha em meu quarto, peguei o espelho novamente e olhei com atenção. Engraçado, conhecia aqueles olhos de algum lugar. Eram penetrantes e de uma serenidade que não era minha. Teria que aprender na marra a viver com eles. O dono daqueles olhos sem dúvidas era alguém mais vivido que eu.
Passei dias que mais pareciam anos no hospital, tentando me adaptar a nova vida e me esforçando para esquecer que meus amigos haviam me abandonado com medo que eu morresse. Que droga! Eu estava viva! Por que me enterraram antes do tempo? Que injustiça!
Quando a enfermeira entrou no quarto, lutei contra as lágrimas que não pareciam ser minhas, tinham um outro gosto e um jeito diferente de cair. Estranho, pensei eu.
- Juliana, um rapaz lhe deixou isso na recepção do hospital hoje. - disse ela animada, mostrando uma caixa do meu chocolate favorito junto de um bilhete. Esperei a enfermeira sair e abri.
Meu coração deu um salto quando vi o nome. Era do André.
Estava digitado no computador. O que achei estranho, vindo de um garoto que sempre gostou do papel e da caneta. Por mais que meus olhos reclamassem do esforço eu li até o fim. O bilhete dizia:
"Ju,
Sinto muito por te deixar sozinha no momento mais difícil de sua vida. Acho que não agi certo, por mais que essa tenha sido a melhor solução que eu tenha achado para o meu problema. Saiba que tranquei minha faculdade e fui passar um mês no campo junto do meu avô, me isolando de tudo e de todos para refletir sobre a vida antes de tomar a decisão mais difícil de minha vida. Por isso sumi.
Assim que você se recuperar quero te encontrar para conversarmos melhor.
Eu te amo muito.
André"
Aguardei ansiosamente a minha ida para casa. Depois, ansiosamente até minha mãe me deixar sair do repouso.
No dia anterior a minha volta para o mundo, mandei uma mensagem para o André. Ele me respondeu com uma ligação. Estava muito estranho, mas mesmo assim consegui marcar um encontro com ele. No fundo, escutei um cachorro latindo. Devia ser o do vizinho, pensei. O André não tinha cachorro.
Quase não consegui dormir aquela noite. Tinha uma estranha sensação de que algo muito forte para eu aguentar iria se revelar. Sinceramente, acho que não aguentaria mais um baque em minha vida.
Cheguei na praça onde marcamos o encontro e sentei no banco, ansiosa. Olhava para as folhas que rodopiavam com o vento quando vi um cachorro cruzando a esquina. A coleira que ele usava não era comum, era uma guia. E finalmente seu dono apareceu, sendo guiado por ele. Seu dono era o André.
Ele se aproximou de mim. Seu cão guia sentou ao lado dele, fiel.
Imediatamente começei a chorar.
- Eu não acredito que você fez isso! - eu disse surtando.
- Eu fiz o que achava certo. Dei a você o que lhe era mais importante.
- Você acabou com a sua vida por minha causa!
- É aí que você se engana. Eu já compreendi como é viver. Se sou forte para tomar esta decisão, posso passar tranquilamente pelos obstáculos da vida. Já você tem muito o que aprender.
Chorei compulsivamente. Queria que fosse que nem nos desenhos animados, onde eu poderia arrancar os olhos e colocar de volta nele. Mas não era assim. Já estava feito. Eu não tinha nada a fazer a não ser fazê-lo se orgulhar da decisão que havia tomado. Decidi driblar minha ingenuidade de menina mal vivida. Agora era a hora de voltar a viver. Respirei fundo, me aproximei dele, beijei-o profundamente e disse sentindo a forte conexão que agora tomava conta de nós:
- Obrigada por trazer minha vida de volta. Eu te amo.
Ele sorriu e respondeu:
- E você, obrigada por me fazer voltar a enxergar neste exato momento.